Da parte materna da minha família, sempre ouvi dizer deles que à noite ceavam, enquanto que eu jantava. Ou nós, da cidade, jantávamos. Nunca dera grande importância a isso, até porque na cidade, costumávamos associar a ceia a algo que se comia mais tarde na noite, depois do jantar.
Ouvia também dizer que se almoçava de manhã. E isso fazia-me uma confusão tremenda, principalmente a mim, jovem naquele tempo e habituado a erguer-me a meio da manhã. Não posso assegurar com certeza acerca do seu jantar, mas lembro-me de ficar com a ideia que, no campo, as pessoas almoçavam cedo. Lembro-me inclusivo, de pensar que não faziam mais nada a não ser comer, de tantas refeições que faziam e que almoçavam logo pola manhã...
Acontece que em conversa com amigos meus do norte do Minho, chamou-me a atenção o facto de eles dizerem que iam jantar a meio do dia, quando eu me preparava para almoçar. Foi então aí que - e passados estes anos todos - fiz a conexão entre este dado importante e aqueloutros que haviam ficado retidos na minha memória, dos meus tempos de jovem pequeno, na aldeia transmontana dos meus avós. O problema não estava em eles comerem muito e almoçarem logo de manhã; o que passa é que toda a refeição salta uma atrás na ordem das refeições do dia.
Assim, enquanto que na cidade - e nos meios de comunicação social e sociedade em geral - temos o pequeno-almoço de manhã, o almoço ao meio-dia, o lanche a meio da tarde e o jantar à noite, no campo temos: almoço, jantar, merenda e ceia. Ou seja, temos a desvirtuação do conceito de almoço e jantar, que saltaram uma refeição à frente e a inclusão de uma adaptação do inglês lunch, também ela desvirtuada do seu sentido original; cresce ainda uma outra que é o pequeno-almoço e ainda temos a ceia, que apesar de não figurar no menú das refeições diárias citadinas, sempre foi mencionada como a refeição que se faz depois do jantar (mas que ninguém faz...).
Em relação à merenda, sempre ouvi "merendar" quando nos preparávamos para comer algo a meio da tarde. Fosse em casa ou no passeio polo campo, se bem que em passeio sabia sempre melhor...
Como ocorrem estas alterações no significado das palavras, não sei. Sei que há uma evidente deturpação ao longo do tempo. E sei também que, no norte de Portugal, continua a almoçar-se de manhã e a cear-se ao fim da tarde. A merenda faz-se ao meio da tarde. A norte do Minho, continua ainda a dizer-se assim.
É curioso, contudo, constatar as definições das diferentes refeições do dia no e-Estraviz e no Priberam:
Estraviz
Almoço - s. m. Comida de manhã. Primeira comida do dia depois de erguer-se, sem contar a parva que, normalmente, consiste só numa copa de aguardente.
Merenda - s. f. (1) Refeiçom ligeira da tarde. (2) O que se merenda.
Jantar - s. m. (1) Comida principal do dia, entre o almoço e a ceia, no meio do dia: convidei-o ao jantar e depois nom veio.
(2) O que se come ao jantar: preparou um bom jantar.
Ceia - s. f. (1) Refeiçom que se toma à noite e que, geralmente, é a última que se toma em cada dia.
(2) O que se toma para cear: fez uma ceia ligeira.
Priberam
Almoço - s. m. Refeição da manhã.
Merenda - s. f.
1. Ligeira refeição da tarde. = lanche
2. O que se merenda.
3. O que se leva para comer. = farnel
4. Pastel de massa folhada, geralmente recheado com queijo e fiambre.
5. Bras. Comezaina de noite, fora de horas.
Jantar - s. m. 1. Refeição principal do dia.
Ceia - s. f. 1. A última refeição do dia, feita depois do jantar.
2. Quadro que representa a última ceia de Jesus com os seus Discípulos.
Constata-se que o Priberam mantém em certa parte o sentido original das refeições, não as associando aos conceitos em uso, hoje-em-dia. Em relação ao almoço, afirma só que é a refeição da manhã, enquanto que o jantar é a principal refeição do dia, não fazendo comentários acerca de quando ela ocorre. Essa definição cronológica é já aplicada, no entanto, à merenda e à ceia.
É curioso constatar que os conceitos se mantêm mais a norte e que, em muitos destes casos, a perservação destes hábitos seculares são sinónimo de parolismo, e conotados com pessoas de baixo índice cultural. É certo que essas pessoas não possuem a instrução das pessoas das grandes cidades, mas a nível cultural, têm porventura eles uma áurea mais rica e genuína do que muitos dos que nas cidades os apelidam de labregos. É também viável que esta desvirtuação do sentido original das refeições tenha se dado por motivos de divergência dos horários entre as pessoas do campo e da cidade. Uns levantam-se com o galo, enquanto os outros um pouco mais tarde. Seria o suficiente para a as refeições darem um salto à frente?
Fica aqui o convite para um evento que inclui o jantar.