quinta-feira, 17 de setembro de 2009

As refeições do dia

















Por vezes ocorre-me que, na extensão da língua, costumes e cultura para sul, muitas das palavras e conceitos foram perdendo o seu conceito original e ou se transformaram noutras ligeirtamente parecidas ou sofreram uma metamorfose completa. Existem vários casos que poderia enunciar. No entanto, falarei daquele que importa hoje, porque é uma questão que me interessa faz tempo.

Da parte materna da minha família, sempre ouvi dizer deles que à noite ceavam, enquanto que eu jantava. Ou nós, da cidade, jantávamos. Nunca dera grande importância a isso, até porque na cidade, costumávamos associar a ceia a algo que se comia mais tarde na noite, depois do jantar.

Ouvia também dizer que se almoçava de manhã. E isso fazia-me uma confusão tremenda, principalmente a mim, jovem naquele tempo e habituado a erguer-me a meio da manhã. Não posso assegurar com certeza acerca do seu jantar, mas lembro-me de ficar com a ideia que, no campo, as pessoas almoçavam cedo. Lembro-me inclusivo, de pensar que não faziam mais nada a não ser comer, de tantas refeições que faziam e que almoçavam logo pola manhã...

Acontece que em conversa com amigos meus do norte do Minho, chamou-me a atenção o facto de eles dizerem que iam jantar a meio do dia, quando eu me preparava para almoçar. Foi então aí que - e passados estes anos todos - fiz a conexão entre este dado importante e aqueloutros que haviam ficado retidos na minha memória, dos meus tempos de jovem pequeno, na aldeia transmontana dos meus avós. O problema não estava em eles comerem muito e almoçarem logo de manhã; o que passa é que toda a refeição salta uma atrás na ordem das refeições do dia.

Assim, enquanto que na cidade - e nos meios de comunicação social e sociedade em geral - temos o pequeno-almoço de manhã, o almoço ao meio-dia, o lanche a meio da tarde e o jantar à noite, no campo temos: almoço, jantar, merenda e ceia. Ou seja, temos a desvirtuação do conceito de almoço e jantar, que saltaram uma refeição à frente e a inclusão de uma adaptação do inglês lunch, também ela desvirtuada do seu sentido original; cresce ainda uma outra que é o pequeno-almoço e ainda temos a ceia, que apesar de não figurar no menú das refeições diárias citadinas, sempre foi mencionada como a refeição que se faz depois do jantar (mas que ninguém faz...).

Em relação à merenda, sempre ouvi "merendar" quando nos preparávamos para comer algo a meio da tarde. Fosse em casa ou no passeio polo campo, se bem que em passeio sabia sempre melhor...

Como ocorrem estas alterações no significado das palavras, não sei. Sei que há uma evidente deturpação ao longo do tempo. E sei também que, no norte de Portugal, continua a almoçar-se de manhã e a cear-se ao fim da tarde. A merenda faz-se ao meio da tarde. A norte do Minho, continua ainda a dizer-se assim.

É curioso, contudo, constatar as definições das diferentes refeições do dia no e-Estraviz e no Priberam:

Estraviz

Almoço - s. m. Comida de manhã. Primeira comida do dia depois de erguer-se, sem contar a parva que, normalmente, consiste só numa copa de aguardente.

Merenda - s. f. (1) Refeiçom ligeira da tarde. (2) O que se merenda.

Jantar - s. m. (1) Comida principal do dia, entre o almoço e a ceia, no meio do dia: convidei-o ao jantar e depois nom veio.
(2) O que se come ao jantar: preparou um bom jantar.

Ceia - s. f. (1) Refeiçom que se toma à noite e que, geralmente, é a última que se toma em cada dia.
(2) O que se toma para cear: fez uma ceia ligeira.

Priberam

Almoço - s. m. Refeição da manhã.

Merenda - s. f.
1. Ligeira refeição da tarde. = lanche
2. O que se merenda.
3. O que se leva para comer. = farnel
4. Pastel de massa folhada, geralmente recheado com queijo e fiambre.
5. Bras. Comezaina de noite, fora de horas.

Jantar - s. m. 1. Refeição principal do dia.

Ceia - s. f. 1. A última refeição do dia, feita depois do jantar.
2. Quadro que representa a última ceia de Jesus com os seus Discípulos.


Constata-se que o Priberam mantém em certa parte o sentido original das refeições, não as associando aos conceitos em uso, hoje-em-dia. Em relação ao almoço, afirma só que é a refeição da manhã, enquanto que o jantar é a principal refeição do dia, não fazendo comentários acerca de quando ela ocorre. Essa definição cronológica é já aplicada, no entanto, à merenda e à ceia.

É curioso constatar que os conceitos se mantêm mais a norte e que, em muitos destes casos, a perservação destes hábitos seculares são sinónimo de parolismo, e conotados com pessoas de baixo índice cultural. É certo que essas pessoas não possuem a instrução das pessoas das grandes cidades, mas a nível cultural, têm porventura eles uma áurea mais rica e genuína do que muitos dos que nas cidades os apelidam de labregos. É também viável que esta desvirtuação do sentido original das refeições tenha se dado por motivos de divergência dos horários entre as pessoas do campo e da cidade. Uns levantam-se com o galo, enquanto os outros um pouco mais tarde. Seria o suficiente para a as refeições darem um salto à frente?

Fica aqui o convite para um evento que inclui o jantar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Adonde vais, galego?
















Durante as férias pude comprovar o estado da língua tanto a norte como a sul do Minho. Ouvindo os mais velhos falar, além de se aprender muito, como guardiãos da sabedoria que são, podemos escutar como se falava em determinada época anterior à nossa por serem eles conservadores de um jeito de falar e de uma fonética correspondente ao tempo em que eles se fizeram pessoas.

Ainda assim, sendo estas pessoas de idade como que os mais fiéis reprodutores do modo de falar de antigamente, não podemos deixar de ter em conta que também eles sofreram já influências de um e do outro "idioma", ainda que a sua repercussão seja mínima e o seu falar seja uma ilustração fidedigna do jeito de falar de um passado não muito distante.

Constata-se facilmente que, a sul do Minho, a fonética dos mais velhos é um falar mais rude, mais labrego e conotado como uma pronúncia parola, própria de gente iletrada e do campo. Esquecendo a estupidez destes (pre)conceitos e abstraindo-nos do outros preconceitos criados pelas fronteiras físicas que não correspondem de facto às fronteiras dos homes, facilmente se percebe que o falar dos mais antigos tem uma fonética mais parecida com o galego, variante dialectal do português (ou vice-versa, dependendo dos ângulos) e tido, ainda por muitos a sul do Minho, como um dialecto do castelhano (ainda que admitindo que ao olhar para aquilo que a maioria dos galegos do norte do Minho escrevem se assemelha mais a castelhano do que a outra coisa; fica, no entanto, este assunto para mais tarde, num fio próprio). Esta semelhança é não só fonética como também de sintaxe e de léxico. De facto, há palavras usadas pelos mais velhos que não têm o direito de aparecer nos dicionários da língua. Eventualmente não são considerados portugueses. Ou então português correcto. O que é certo é que eles existem e são usados no dia a dia e não só merecia como deveria ser obrigatória a sua inclusão nos dicionários. Neste campo, a contribuição da recém-formada Academida Galega da Língua Portuguesa veio dar um esperançosos contributo para que os termos usados pelos habitantes do estado português (que são os mesmos que os usados pelos galegos da outra banda do Minho) não só caiam em desuso como no esquecimento.

Rumando a norte, já no território baixo o domínio espanhol, podemos facilmente constatar que o uso do castelhano suplantou largamente o uso do galego por todo o território da Comunidade Autónoma de Galicia. Por todo o lado vemos sinalização em castelhano, seja ela de carácter oficial ou comercial ou informativo. Mesmo na sinalização das ruas, a informação aparece nas duas línguas ou, em muitos dos casos, apenas em castelhano. A excepção creio ser Compostela.

No falar das pessoas, nota-se uma predominância do castelhano em todo o lado. Mesmo nos que falam galego, se não tomarmos atenção cuidamos que eles estão a falar castelhano. Pola pronúncia, pola entoação, polos "eh?" no fim das frases, polos "ción" no lugar dos "çom" e porque o que a maioria fala tampouco se assemelha a galego mas a castelhano esforçado no sentido de parecer galego, trocando os "a" e os "lo" por "a" e "o" e pouco mais.

Os mais novos falam praticamente todos em castelhano. Poucos são os que falam galego, ainda que vi famílias a fala-lo com os seus filhos de quatro e oito anos. Mas a meiríade fala castelhano. Por prestígio, por complexo, por pequenez e por falta de alcance. Também porque lhes é imposto, porque está em todo o lado e porque entra polas casas adentro, incluindo na Televisión de Galicia. Se falarmos com um camareiro em português (do norte, daquele que qualquer galego com mais de 35 anos identifica como seu), logo ele responde em castelhano. Alguns fazem-no em galego. Os mais velhos percebem-nos melhor. Ainda assim há mais velhos com cara de galego mas com ar de espanhol. Percebem-nos, mas repetem o que dizemos, em castelhano. São galegos mas querem ser, perantes nós, espanhóis.

Os mais velhos, ou a maioria deles, fala galego. Galego galego! Galego assim como um cruzamento entre um natural de Ponte de Lima ou de Vila Pouca de Aguiar. Sem sofrer a influência sonética da capital do estado português, claro está (depois há essa outra influência, a do sul, mas será também ela abordada em fio próprio). Daqueles genuínos, que falam sempre da mesma maneira e que não mudam a sua fonética por estarem de fronte de gente importante ou da cidade, com o intuito de agradar e de não parecer tão labrego. Galego com uma fonética cerrada, com "a", "e" e "o" fechados. Um galego que se eu não soubesse que estava na Galicia, cuidaria que era dali de alguém do norte de Portugal. Um galego que a minha mulher identificou como português e me chamou atenção para o facto, ela que sabe que cismo com estes estudos e com estes detalhes. Realmente o que esses dois casais, com idades compreendidas entre os 50 e os 60 e poucos, falava era português. Da Galiza. As expressões, a suavidade, os termos, era tudo menos aquilo que passa num canal de televisão e que é apelidado de galego mas que não passa de uma versão aproximada do castelhano.

Passo a citar alguns exemplos. O primeiro, o destes casais: "Pra que queres que jogue a bisca? Já nom a jogastes há pouco". Eu, que não sou perito nestas questões linguísticas, mas um interessado apenas, vou tentar traduzir isto fonéticamente: "Pra k kéres k xóg' a bisca? Já nom a xogastes á pouco?". Não me parece que tenha surtido grande diferença. Ficou a tentativa. Cumpre dizer que os "a" e os "e" que não estão acentuados são fechados. O que um galego mais novo diria no seu galego seria: Prá qué quéres qué xógué á biscá? Xá nón á xógastés á poucó?.

Depois há as expressões. Escutar um grupo de velhos que se ajuntam num muro ou num passeio revela ser interessantíssimo. A maior parte deles lembrou-me os velhos do Porto, pola sua boa disposição, sentido de humor e polas expressões: "Carcaça... ó carcaça!! Onde bais, caralho?!", dizia um de 60 para um dos seus 80 e tal. Ou então dois grupos de dois que se encontram, uns em andamento, os outros sentados num murinhos: "Atom caralho, que estás mais velho que o ano passado!!" (Atóm caralhu, que estás máis vélho c' ó anu passadu). Dito assim, num galego cerrado e perfeitamente reconhecível.

De um lado e do outro, vai se perdendo a fonética a pronúncia, as expressões, a originalidade da língua que tanto charme lhe dá, em detrimento da pseudo-intelectualidade lisboeta, cheia (impregnada, diriam eles) de palavras caras e do altivismo castelhano. Adonde vais, galego?