
21-Mar-2007
"Destruí essa raia que separa, como uma muralha de ódio, uma família de irmãos, convertendo-a em estrangeira, e sobre as ruínas dessa muralha tendei a ponte pela qual se comunique e enlace o coração da Galiza ao coração de Portugal (...)" M. Curros Enríquez, 1893
Em Mandim há uma taberna. O taberneiro chama-se Xico. A raia passa perto de ali e a taberna é um couto mixto. Galegos de aquém e de além convivem e combebem. Fala-se galego; galego de cá e de lá. Serve-se aguardente do país, destilada por um velho alambiqueiro no Cambedo. Mas o país ficou talhado por uma raia. Ouvem-se cantigas do Zeca e foliadas de gaita, dançam-se moinheiras e viras. A raia passa perto, mas na Taberna do Xico as raias ficam fora. O Couto Mixto está perto de Calvos de Randim. Lá há uma igreja e na igreja uma arca velha. Um dia essa arca foi o símbolo de uma república de pessoas livres. A última ponte entre a Galiza e Portugal que ficava em pé. Lá nada se sabia de geopolítica nem de razão de estado. Um dia a geopolítica e a razão de estado chegaram lá. Agora só fica a velha arca agachada no fundo de uma velha igreja e, lá ao fundo, a raia a cortar o horizonte. Enquanto o alambiqueiro do Cambedo fia no bagaço, alguém conta mais uma vez a historia dos guerrilheiros. Chegaram fugindo da Guarda Civil e acharam refúgio na aldeia. Os fascistas rodearam as casas e depois de horas de inútil caça ao homem mudaram de estratégia. Começaram a cair as bombas sobre o povo cúmplice. Algum guerrilheiro logrou fugir, outros não. O povo também não. Foi punido exemplarmente: Para a cadeia do Porto. Ainda ficam testemunhas. Há também uma tabuleta que diz “em memória do vosso sofrimento”. Feridas. Cicatrizes. Raias... O Cambedo é um dos três “povos promíscuos”. Já o nome diz tudo. Os outros dous são Lamadarcos e Soutelinho. A raia passava pelo meio das casas. Na cozinha eram espanhóis (da Galiza) e no comedor, portugueses. Um dia chegou a geopolítica. Espanha ficou com o Couto Mixto e Portugal com os “promíscuos”, que assim deixaram de o ser de vez. Um dia armou-se foliada. Os gaiteiros eram de além a raia e os dançantes de aquém. Chegou a Guarda Civil. “Los españoles no pueden estar aquí. Se acabó la fiesta, cojones”. Foram-se para a raia. Galegos de cá, de uma banda e galegos de lá, da outra. Continuou a folia transfronteirizamente. Em Vilarelho da Raia há uma pedra a separar duas hortas. Essa pedra separa também dous estados. Espanha: cebolas; Portugal: batatas. Que pouco são os estados às vezes. Em Vilarelho também há um formoso museu etnográfico. A primeira vez que lá fomos mostraram-nos um carro de vacas, uma enxada, um jugo de canga, um funil, várias olas, uma gramalheira...O amável senhor que nos acompanhava esforçava-se por tentar explicar-nos os mistérios da roca, ou os diferentes usos da fouce. Falava melhor galego do que nós mas havia toda uma raia a separar-nos. Na taberna do Xico contam-se centos de histórias semelhantes. Histórias de uma linha traçada sobre as raízes, a música, as pedras, as casas, os meninos, as línguas, as consciências, as vidas, o futuro, os direitos, a dignidade... Histórias de uma raia inútil, porque a vida tende as pontes que a geopolítica derruba. Absurda, porque a memória ressuscita os laços que a (sem)razão de estado tenta talhar. Para apagá-la bastaria com derrubar os fitos de pedra perdidos por esses montes, que são a única marca física da sua existência. Mas essa não é a verdadeira raia...A verdadeira é a que levamos na cabeça. E essa vai connosco a onde quer que vamos. Uma raia por pessoa neste país das mil raias.
A GENTE DA BARREIRA